1.
sem mais
uma gota fazendo caminho nas costas
excesso de mãos
dedos
em pinça
espantando o sonho
quando o abismo se ergue no fundo dos pés
canyon
pernas abertas
eu
que me escondo entre as mãos
respiro
respiro
o salto
um excesso
vestígio de calor na fronha molhada de sal
2.
é meia-noite e recomeços são mentira
a costura dos eventos
sempre alinhavada
é meia-noite e há esperanças dando de cabeça nos muros
mordendo a flacidez que alcança a boca
onde o sumo do grito é mais doce
é meia-noite do ato banal de se arrastar busto em terra
eu venho contando o risco de se querer sutil
é meia-noite
ouve
é a garganta que rasguei no berro
isso que te queima
fazer de teto o veludo azul da redoma
que não tem mais
pontos de luz
para ligar
3.
escolho a ponta mais alta do telhado da minha casa contra o céu
vai chover porque eu mudei de ideia
hoje era dia de limpar os sapatos
e eu preferi ver tevê
então o céu encrudesceu de descrença
assim contra o telhado da minha casa
de dois andares
que dá trabalho de limpar só com quatro membros
e abriga muito pouca coisa e muito pouco sono
pra tanto espaço
terraço três quartos boa localização
a minha casa tem uma cor que não dói nos olhos
e dentro dela eu posso escolher o dia de limpar os sapatos
sem me molhar desde os cabelos
aqui tem um vaso de planta vazio dentro de outro vaso de planta vazio
e eu gosto de pensar que estão unidos
no luto que abrigaram
vai chover porque eu devia ter checado o interruptor
que me deixa no escuro quando existir machuca a pele
mas escolhi lamber os passos
do caminho que não vai ser meu
aqui ao menos os móveis estão sempre no mesmo lugar
e as unhas não apodrecem nos dedos
como deve ser comum aos mortos
Milena Martins Moura é mestre em literatura brasileira e tradutora. É autora dos livros Promessa Vazia (2011), Os Oráculos dos meus Óculos (2014) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (Primata – no prelo). Integra a equipe de poetas do portal Fazia Poesia e de colunistas da revista Tamarina Literária.