Não se deve tirar o bastão de um ancião. Sabe disso desde muito cedo, quando ainda costumava carregar brinquedos de um lado para o outro. Eles não deviam ter feito aquilo. Amossu não deveria tê-los instigado. Deixar um ancião sem o seu bastão não é certo. Não acaba bem. Trilha a estrada de barro que leva à casa do avô. Na noite anterior choveu fraco. Os pés ficam barrentos quando pisam na terra pela manhã. Adetola deve acordá-lo e ir com ele até a casa de Tifáse. Grita: Fagunwa. Sem resposta.
Aproxima-se, a porta entreaberta. Guardada a entrada por Èsù. Heepa. Saúda-o e entra. Dependurada na parede caiada de branco a àpò do avô. Saíra antes? Não sairia sem ela. O bastão encostado num canto. Chama novamente: Fagunwa. No quarto não há ninguém. Na cozinha e no terreiro dos fundos apenas as galinhas passeiam. Retorna. No meio do caminho encontra Òpèkí. Procura a avó desde cedo. Estão atrasados. Sabem disso. Dão as mãos e continuam a pisar a umidade barrenta daquele dia.
O corpo da jovem é para Adetola feito um bastão de apoio para não escorregar. Gosta de pensar que o seu corpo é o mesmo para Òpèkí. No caminho até a casa de Tifáse não viram um ancião nas ruas, nas janelas ou nas portas das casas. Naquela manhã nenhum morador viu alguém mais velho sobre o sol. E à noite também não os viram sobre a lua. Naquele dia, naquela semana e naquele mês os anciões não foram vistos.
Aqueles fizeram todo o tipo de coisa errada que foram avisados que não fizessem. Não se toma o bastão de um ancião. Quem iria na casa de Tifáse? Quem ensinaria o uso das folhas, raízes e sementes para curar? Quem conseguiria lembrar todos os versos que guardam a nossa história? Quem saberia consultar os oráculos para resolver nossos problemas? Nossos costumes começam a morrer um atrás do outro. A terra nos cobra os erros cometidos, as moedas para quitar tal dívida serão tiradas dos nossos bolsos e dos bolsos da nossa descendência. Numa encruzilhada alguém ri alto e nos olha com desprezo.
Amosu não aprendeu que nem todas as contas são as contas sagradas. Naquela manhã em que mergulhou fundo no rio, deveria saber que não aprendeu a nadar porque não havia quem o ensinasse. Agora mora no fundo das águas.
Os dias passaram rente a porta, as tardes e noites os acompanhavam num cortejo que nos falava da desmemória. Òpèkí é mãe, mãe de um menino. Pego-o nos braços e o levanto bem alto para que todos possam vê-lo. Na porta de casa e no quintal os égúns dançam. Estão lá a avó de Òpèkí e todos os anciões desaparecidos. Procuro pelo meu avô Fagunwa. Não o vejo. Chamo: Fagunwa. Meu filho chora. Chamo novamente e a criança no meu colo chora aos berros que espantam as nuvens. Olho nos seus olhos e digo: Fagunwa. Ri. Ele é Bàbátunde.
Rafael Ifaponle é nascido e criado na favela da Rocinha no Rio de Janeiro. Trabalhou na Biblioteca Parque e fundou, junto com outros moradores, o Sarau Letras da Favela. Estudou jornalismo e cursou o mestrado em filosofia na PUC-Rio. Publicou os livros de contos Livro dos desvios e Calendário das distopias e o livro de narrativas Favelavra. Atua em projetos de formação de leitores na favela da Rocinha.