Catita: “Como não ter raiva do próprio choro?”

Entrevista concedida a André Balbo, editor da Lavoura

Em 17 de setembro de 2019 – e diante da bagunça temporal que vivemos não é trivial concluir que hoje a data completa exatamente um ano – uma Casa das Rosas quente e abarrotada recebia o lançamento coletivo da Editora Feminas, uma nova editora de São Paulo especializada em publicações de autoria feminina. Na mesma oportunidade eram lançados livros de Juba Maria, Valéria Tarelho e Catita. A última, autora de Morada, sem dúvida a principal responsável para tamanha concentração de pessoas e calores no começo da avenida Paulista. Verdade seja dita: ela era a única autora de São Paulo. Mas ainda que fosse de uma cidade de oito mil habitantes: Catita atrai muitos porque é muitas. Mulher, negra, professora, pesquisadora, “escrivinhadora”, paulistana, filha, tia, amiga, amante, como ela mesma se apresenta na minibio ao final da entrevista, depois de mandar o editor e seu “padrão do site” irem catacoquim.

O evento se desenhava memorável desde o primeiro minuto – é nas noites quentes que a memória se agarra, já escreveu um efusivo Cortázar – e em pouco tempo ganhava ares de efeméride, conforme a Casa das Rosas passava a concentrar círculos sociais, culturais e afetivos dos mais diversos, e não é preciso recorrer a um artifício semântico para dizer o quão insólito isso é durante um lançamento de livro em São Paulo. Convenhamos.

E insistir nesse tom histórico, com uso do pretérito imperfeito tendente à crônica capenga, poderia ser presságio de que mais vale a casca do que o caroço. Não é o caso. Se há caminho possível para reconstruir a noite de 17 de setembro de 2019, este é a manipulação da memória no presente, arrebatamento a que se propôs essa entrevista que dá nascimento à seção “De Corpo Inteiro”. Além das respostas de Catita, você pode ler três poemas de Morada aqui.

A epígrafe que abre Morada é uma entrada de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, em que a autora diz: “É preciso criar esse ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (…) As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários”. Castelos são construções complexas e ocupam um lugar privilegiado em nossas fabulações, mas podem também ser percebidos em suas partes mais cotidianas: paredes, janelas, portas e teto – palavras que nomeiam cada uma das partes de Morada. Em que medida seu livro pode ser lido como um castelo imaginário?

Eu sempre costumo dizer que meu “mundo imaginário” não para: ele me encanta e me perturba, na mesma intensidade, o tempo todo. Um modo de dominá-lo (ilusão minha, eu sei) é escrever, “escrivinhar”. Quando Morada germinou no meu mundo imaginário, percebi que o que ele trazia de memória e de reflexão atual (perene?) começou a tomar forma de casa, habitação – da mais simples ao “castelo”. Memórias das leituras da infância, de quando eu ainda não sabia identificar a visão eurocêntrica, mas já questionava o abandono de João e Maria, a submissão das princesas, os desvalidos como figurantes… Reflexões dessa mulher hoje, que habita um corpo negro, que tem o funcionamento complexo e natural como qualquer outro, mas cuja existência incomoda e desperta ódio irracional nos não-negros (histórica e individualmente). Morada se constrói como um castelo imaginário de fortaleza, sem deixar de ver as rachaduras; de proteção, sem que o fosso em volta continue sendo isolamento; de reconhecimento identitário, pelo não espelho do “padrão” “comum” a que nunca pertenci; de afeto, que se quer farto a todo mundo, mas muitas vezes é negado, ocultado, minguado.

O livro é permeado pelo cotidiano prosaico, onde muitas vezes não há grandes perspectivas – ao menos não retóricas ou explícitas – e no qual se verifica uma permanência, ainda que “a contragosto”, sintagma que é repetido algumas vezes. Entre os poemas mais cotidianos, “Tardes de outono” me chamou especial atenção. Nele, pulsa aquilo a que se pode chamar “estranhamento” – no poema, a própria tristeza é “estranha” e, ao mesmo tempo, uma “velha conhecida”. Existe um mal-estar (“Me dá uma vontade doce de chorar”), espécie de estado anterior à mudança da ordem das coisas. No entanto, não há uma epifania reveladora; como no Drummond de “Os ombros suportam o mundo”, a vida mantém-se uma ordem e a culpa é da tarde de outono, essa entidade genérica. Ou melhor, assim seria se não fosse o verso final, que especifica: outono brasileiro. Achei potente porque o poema se constrói em torno de uma subjetividade comezinha e no final se exterioriza, conclama um lugar compartilhado, cultural e geograficamente (o Brasil), o que me levou a reinterpretar o próprio choro, não mais individual, mas compartilhado por outras que estranham as coisas e têm uma vontade doce de chorar. Catita, considerando que essa característica é marcante no livro – o próprio choro escorre e alcança diversos poemas –, fale um pouco sobre essa busca do político, ou dos sentidos existenciais compartilhados, a partir do dia a dia do eu.

Primeiro, agradeço sua leitura e análise, processos que ampliam o que escrevemos. (Fosse ao vivo essa entrevista, você me veria agora tomando fôlego para responder!) Segundo, emoções, sentimentos parecem sempre ser algo particular, individual até que se comenta com um aqui, com outra lá e eles vão tomando forma coletiva, reconhecível e então podem ser melhor compreendidos. Meus irmãos contam que sempre fui muito chorona na infância – contesto essa memória! – mas o crescer é dolorido para todos; e para alguns, dentro de algumas condições, ainda mais. Aprendi a não chorar em público e a reprimir meu choro no privado, pois o contrário seria revelação de fraqueza. E assim fui represando represando até que os escrivinhados romperam a barreira. Digo sempre que escrevo porque me dói, escrevo porque me sereniza. É esse o mesmo processo do choro: uma dor que começa minha/em mim, que hoje sei deixar que me tome, sem que me domine. E é nessa dor, talvez mais tentando compreendê-la que enfrentá-la, que reconheço em mim outras tantas mulheres, homens, pessoas enfim. Essa irmandade me faz perceber que a causa do choro muitas vezes não está em nós, mas no entorno, em como somos tratados, reconhecidos e considerados, nós mulheres, nós negros, nós LGBTQIA+, nós desvalidos, nós indígenas, nós trabalhadores, nós grupos vários e diversos minorizados, invisibilizados. Estamos sempre em luta e por isso mesmo (mais causa que consequência) sendo golpeados, alvejados, feridos… Enraivecemos, bradamos, nos sentimos impotentes, sem perspectiva… quase desistimos, alguns sucumbem. Como não chorar? Como não acolher o choro? Como não ter raiva do próprio choro? Como continuar seguindo sem ter a opção de não seguir?

A conjugação da experiência poética com a morada é um caminho percorrido por muitas escritoras para explorar as possibilidades de construção de um novo lugar enunciativo, no qual a subjetividade entende-se a si mesma e passa a compor laços ou “mapas capilares” com outras subjetividades – no poema “Tranças”, por exemplo: “Meu crespo grisalho farto / As vozes das minhas de antes / Na minha boca de hoje / As histórias de ontem / Agora nas mãos retintas dela / A trançadeira”. Desde Um teto todo seu, de Virginia Woolf, até Uma casa se amarra pelo teto, de Viviane Nogueira, palavras escoam por buracos nas paredes (janelas?), expondo as vísceras dos processos que controlam e excluem corpos. Catita, em Morada há poemas que se inserem abertamente nessa disputa pela ótica da mulher negra escritora, como “Pelos sete palmos”:

Não componho poema
Porque um dia tentaram me convencer
De que literatura só é assim chamada
Se não for compreendida
Se não for acessível à massa
Se estiver nos programas da academia
Se estiver nas grandes editoras.
O resto não era literatura.
O resto era gritaria ou choradeira
O resto era só manifesto.

Construir um poema é erguer uma casa para ser habitada, ser feita morada, ser feita memória. Considerando a passagem de um ano do lançamento, esse ciclo cabalístico, em que parte ou partes da casa hoje estão as melhores armas contra as paredes físicas e imateriais?

A maior parte das melhores armas hoje estão à vista de todo mundo, na entrada da frente de casa, mas disfarçadas de adornos! Só olhando bem de perto, se já se teve a coragem de aproximar, é que se divisa que não é um mero enfeite, mas arma à mão, fácil e rápida de alcançar, eficiente no proteger e no atacar. Poderiam ter saído das paredes para ostensivamente ornar a entrada, mas talvez deixassem entrever ainda mais medo, não? Sentimento que, na dose certa, é útil para proteção, mas na errada suscita atrocidades… Percebo que alguns de meus escrivinhados trazem a memória daquela menina que não entendia por que não poderia se sentir capaz, ou melhor, por que insistiam em minar suas forças e desejos. Muito ela calou. Sempre volto a ela, na esperança de que ela não me deixe esquecer como as cicatrizes se originaram, não para cultuar a dor, antes para lembrar que posso (me) curar. É curioso como descubro tanto ainda sobre ela nos escrivinhados e nas poucas fotos antigas… na flor no cabelo que hoje ostento (resgatei?) como “marca pessoal” e que ela já lá longe prenunciava…

Essa nossa seção de entrevistas leva o nome “De Corpo Inteiro” em homenagem a Clarice Lispector, particularmente a Clarice entrevistadora. Numa de suas conversas mais famosas, com Chico Buarque, ela pergunta ao músico qual é a coisa mais importante do mundo. Ele responde: trabalho e amor. Contudo, ao ser perguntado sobre o significado do segundo, se desconcerta: “Não sei definir”. Catita, Morada leva amor desde o título até os poemas, inclusive naqueles que não usam ou sugerem a palavra diretamente, como “Eu”. Se me permite essa pergunta, que às vezes constrange mais quem pergunta do que quem é perguntado, quero saber o que é amor, não necessariamente para você, a autora, mas para Morada.

Eu poderia continuar na linha do Chico e de tantos e tantas poetas e dizer que é difícil definir, mas (r)evoluções na vida da autora Catita tiraram as nuvens empatantes do sol e da lua: amor para Morada é chão. Você pode não ter paredes para se segurar, janelas para avistar, portas para abrir, teto para se proteger. Mas é impossível você não ter chão. E pode ser de todo jeito, aspecto, textura, densidade, tamanho, cheiro, temperatura… mas existe, intransitivo! Lembro do processo de produção do livro, com a Editora Feminas, em que surgiu essa questão, algo assim: “Esse livro tem Paredes, Janelas, Portas e Teto, mas não tem Chão. Não está faltando?” Eu respondi que não, que era assim mesmo. Mas é que o chão sempre está aqui, onde o corpo cai morto, onde os corpos podem transar, onde a criança engatinha e dá os primeiros passos, onde na pisada da gira ao som do atabaque posso firmar o pensamento, onde jovens sentamos pra conversar, onde o mendigo dorme e as pessoas passam, onde meus joelhos dobram, onde trato a terra para plantar, onde perfuro em busca de água, onde cavo para esconder meus segredos… Chão é amor. Visto e invisível. Essencial e imperceptível. Sempre pleno. E em qualquer lugar.

Título: Morada
Autora: Catita
Editora: Feminas
Ano: 2019
128 páginas
R$ 35,00


Catita. Mulher, negra, professora, pesquisadora, “escrivinhadora”, paulistana, filha, tia, amiga, amante… Prosa e poesia me germinam entrelaçadas. Escrevo porque me dói, escrevo porque me sereniza. Cotidiano, memórias, negritude e os sentimentos de meu mundo imaginário estão no blog www.letrascatitas.blogspot.com, em sites e revistas eletrônicas como Diários Incendiários, Ruído Manifesto e Poemas para combater o fascismo; em antologias como Eu nunca tinha passado por aqui; Mulherio das Letras; Eu, curiosa? (Coleção Besouro Infanto-Juvenil), Cadernos Negros 41 (poemas) e 42 (contos), Elas e as Letras II, Erupções Feministas Negras (Coletivo LouvaDeusas). Idealizei e mantenho o evento virtual anual “À mesa negra”, o banquete literário novembrino (desde 2017) e sou co-fundadora do FLORES DE BAOBÁ – Coletivo de Escritoras Negras. Morada, pela Editora Feminas, é meu primeiro livro solo (2019).