“Despejo”, conto de Rízzia Rocha

Olhando para ele naquela cama de hospital vi que havia envelhecido muitos anos em pouco tempo. Ainda adormecido pelos efeitos da anestesia, seu corpo nu, sob o fino lençol branco, era diáfano. Respirava com a boca aberta e as mãos agarradas nas grades da cama. Era o desespero frágil da vida que começava a hesitar. Usei ali dois minutos dos cinco que me foram dados e fugi, ameaçada por um choro convulsivo, atravessando de volta a extensa sala cheia de macas até chegar à saída. Naquela tarde, ao deixar o hospital, andei durante horas por ruas desertas. Alamedas largas, arborizadas, silenciosas, organizadas num abandono forjado e mantido, rua ou outra, por um homem numa guarita a vigiar o vazio. As casas construídas ali eram enormes, brancas, higiênicas com amplos jardins e sem qualquer sinal de seus habitantes. Em algumas delas havia cães que vinham latir no portão mais para festejar o movimento que para ameaçar o estranho que passa.

Quando entrei no meu apartamento já era noite. Sentada no sofá, com a estante cheia de livros a minha frente, comecei a pensar nos seus livros. A primeira biblioteca que conheci. Livros velhos, de páginas amareladas, que contavam os deveres da sua religião e cheiravam a mofo. Eu podia sentir o cheiro só ao passar em frente à porta de seu escritório, que você chamava de gabinete. Quando você estava lá, sentado à mesa, usando óculos de grossos aros marrons, eu ficava algum tempo te observando datilografar. Às vezes você me notava, falava comigo uma coisa qualquer que se diz às crianças, outras vezes estava tão concentrado na escrita ou na conversa que travava aos murmúrios consigo mesmo que eu poderia permanecer ali parada durante horas sem ser vista. Em ausências intermitentes você vivia naquela casa que era a última da rua, no alto de um morro numa cidade quente, mas na minha memória sopra um vento fresco de fim de tarde à sombra das árvores, que eram tantas, no silêncio de relógio parado. Pela manhã, o sol sempre vinha iluminar a cozinha dourando o cheiro do café fresco. Era uma infância sem espreitas.

O toque do telefone me faz perceber que eu havia passado quase uma hora no sofá da sala. Atendo o amigo que me convida para uma festa; aceito o convite porque não quero continuar o diálogo; desligo o telefone dando início ao habitual arrependimento pelo sim precipitado ponderando as consequências de simplesmente não ir.

Som alto e o cheiro forte e sufocante de cigarro ocupam a pequena sala cheia de pessoas estranhas. Rostos surgem e desaparecem muito rápido. Entre os flashes de pessoas eu procuro demonstrar que me sinto à vontade – um animal adaptado –, mas permaneço junto à porta de saída e ao lado de uma das poucas janelas existentes ali. Fragmentos de conversa provocam risos, também rio. O álcool, o cigarro e o cansaço de várias noites sem dormir confundem pessoas, ações, sons, conversas. Um homem estranho me olha com insistência reduzindo meu espaço na sala apertada repleta de pessoas. Em busca de ar, abro caminho em direção à janela. O homem passa e eu acompanho o seu olhar sentindo as artérias pressionarem minha garganta. Os sons se afastam, uma vertigem me cega.

Abro os olhos num cubículo de paredes sujas e estantes entulhadas com livros e garrafas vazias; uma luminária velha, acesa, dá ao espaço a sua luz precária. Ergo-me de uma pequena cama para alcançar outra vertigem que me obriga a sentar. Pequenos pontos escuros se movem por entre os objetos, mas não se aproximam: talvez baratas ou outros insetos. Permaneço sentada, sozinha, ouvindo o silêncio confuso de quem procura entender o presente. O ar ainda é turvo. Respiro com dificuldade. Sinto minha cabeça doer. Quero me levantar, abrir a porta e sair, mas não vou. Continuo sentada olhando as paredes e a mobília precária. Não há janelas. Um feixe de luz entra pela soleira da porta… uma sombra passa. A maçaneta se movimenta num ranger curto. A porta se abre e por alguns instantes o sobressalto atinge a minha garganta cortando minha respiração. A lembrança do homem marca minha retina. Abaixo a cabeça, ofego numa angústia imóvel. Ele entra; a porta fecha. A luz insuficiente reveste tudo o que alcança de um amarelo repugnante e a fumaça de cigarro vem assombrar o fluxo da minha respiração. Não há mais pessoas em volta, não há som, só a penumbra. Ouço o ar que sussurra ao se arrastar pela minha boca entreaberta. Não consigo olhar para ele, que se aproxima devagar; cada baforada do cigarro impõe um novo obstáculo aos meus pulmões. Confinada em seu campo de visão meu rosto queima.

Vejo seus pés grandes, sapatos marrons, ele está há um palmo de mim. Minha cabeça arde. Ele lança o cigarro no chão e o apaga com a ponta gasta do sapato. Uma vertigem me cega, meu corpo vacila e ele me ampara. Suas mãos brancas, de dedos longos e finos, seguram meus ombros com violência; estremeço pela força da tensão. Ergo a cabeça com dificuldade, quase me chocando com o seu rosto a alguns centímetros do meu: a imagem já era familiar. Seu corpo, levemente inclinado em minha direção, mantém as mãos agarradas aos meus ombros. Nessa proximidade invasiva o ar de suas narinas se impõe sobre a minha pele. Ele me olha e eu, que me desespero muda, quero fugir, mas não faço qualquer movimento contrário às mãos que me agarram. Presa imobilizada pelos olhos do homem não pergunto o que ele quer. Ele me pressiona, sua força me ergue pelas pontas das unhas cravadas rasgando minha pele num grito curto e abafado que sai da minha garganta e morre no estalo fraco da cama que amortece o peso do meu corpo lançado. O choque trava minha respiração precária. Enquanto resisto à asfixia o homem me imobiliza. Pesando sobre mim, ele pressiona sua testa contra a minha com uma violência determinada a macerar minha pele e, num grito, sua saliva molha o meu rosto. Põe-se em pé com pressa, sai batendo a porta. De olhos fechados eu não sinto a cama sob mim. Fico suspensa ouvindo minha pulsação. Toco meu pescoço no movimento involuntário de quem procura se desvencilhar de algo que o estrangula.

Abro os olhos e a visão naquele quarto amarelo apodrecido me faz correr em direção à porta numa sensação de vômito iminente. Uma cozinha vazia e suja com restos de comida, pontas de cigarro e garrafas de bebidas por todos os lados é a minha primeira paisagem. A cozinha fica no final de um corredor longo e estreito com várias portas fechadas, todas à direita. Sigo em direção à porta que acredito ser a saída desse apartamento estranho.

Na rua deserta, imagino a madrugada pelo ar fresco que restabelece minha respiração ainda pesada pela memória da asfixia. Uma brisa fria toca minha pele aberta. Um carro passa. Caminho em linha reta. Cães latem não muito longe. Paro, olho o céu e não há estrelas. Uma chuva se aproxima. O som próximo de um trovão me detém sob a marquise de uma loja de aviamentos.

Sete de setembro: é o que diz a placa.


Rízzia Rocha tem formação em filosofia e literatura. Pesquisa crítica na arte contemporânea e publica artigos e ensaios na área. Sua relação com a escrita ficcional é um projeto recente.