“dieta”, conto de alexandre arbex

Ontem minha mãe encontrou o macarrão mofado dentro da minha gaveta de biquínis e voltou a me aborrecer falando de comida, saúde e desperdício. Enquanto ela, muito transtornada, gritava que ninguém podia viver assim, eu contava os baguinhos amarelados que brotavam do meio da carne moída e me perguntava se seriam fezes de insetos, ovas ou botões de flor. Ela percebeu como eu estava desatenta e me sacudiu com toda força pelo braço. Seu polegar em volta do meu cotovelo apertava os outros dedos formando uma pulseira gorda. Eu disse que a aliança estava me machucando, e ela me soltou com uma delicadeza tão assustada que parecia uma criança devolvendo à prateleira um enfeite de cristal. Quando minha mãe terminou o sermão e secou o rosto, pedi desculpas e prometi, repetindo as palavras dela, que não iria mais fazer isso comigo.

Essas conversas nunca terminam bem, ela sabe, eu sei. Um ano atrás, quando ela arrancou o espelho do meu quarto – depois o do banheiro, os de toda casa –, nós duas passamos mal. Minha mãe entrou sem bater e me surpreendeu de calcinha diante do espelho colado na face interna do armário. Eu me descontrolei porque ainda estava muito fora de forma na época e não queria ser vista assim. Ela, também nervosa, foi à cozinha, voltou com uma faca para queijos e forçou a lâmina por trás do espelho para desgrudá-lo da porta. Implorei a ela que parasse, mas o espelho se soltou inteiro com um estalo e se espatifou no chão espalhando partes de mim. Minha mãe se agachou e começou a recolher os estilhaços com um desespero feroz, enquanto eu pedia, por favor, para ficar pelo menos com um pedaço do vidro. Angustiada de ver o sangue dela borrar os cacos maiores, embaçando os reflexos, tentei atacá-la e brigamos feio. Ela me empurrou contra a cama e, na queda, fraturei a mão. Enquanto eu urrava, chamando meu pai, ela se ajoelhou, aos prantos, e prometeu que buscaria tratamento.

Eu me espantei ao ouvi-la dizer, diante da psiquiatra, que tinha medo de me encontrar com o pulso cortado por uma lasca de vidro qualquer dia desses. Quando foi minha hora de falar, eu disse a verdade, que só queria ter onde me olhar. Se eu fosse me matar, faria algo limpo, mas isso eu não disse. Nas consultas seguintes, a psiquiatra me perguntava por que eu tinha deixado de comer, mas eu não tinha deixado de comer e este era justamente o problema. Eu não conseguia parar e estava ficando enorme. Ela me perguntou por que eu achava que estava engordando, e eu disse que retinha muitas fezes para não me contaminar no banheiro. Ela sorriu, anotou alguma coisa e me perguntou se eu costumava lavar o banheiro depois de defecar. Eu não, respondi, a minha mãe. Ela me fitou com o semblante severo, juntou as mãos com os dedos entrelaçados sobre a mesa e perguntou se eu me sentia bem com isso. Claro que não, me apressei a dizer, por isso como pouco, para não obrigá-la a limpar o vaso todo dia. Nas outras sessões, a psiquiatra me encheu de perguntas sobre a minha infância em família, a vida no colégio, as coisas de que eu gostava e não gostava de comer quando menina. No início, eu me alegrava de relembrar esses assuntos porque sempre havia uma história engraçada para distrair, mas logo as histórias acabaram e eu passei a me entediar de tal maneira com minha voz que cheguei a dormir falando. Para me manter atenta às perguntas dela, eu ficava contando as balinhas dentro do globo de acrílico que decorava a mesa. Ela sempre me oferecia uma, eu sempre recusava, educadamente, mentindo que já tinha almoçado. Uma bala de menta daquelas derretendo na minha boca me faz tremer até os ossos de tanto frio. Tudo corria bem até a sessão em que ela quis saber se meu ciclo estava normal, mas eu já não menstruava fazia meses e declarei isso a ela sem disfarçar meu orgulho. Ela me encarou com um vinco atravessado na testa e disse qualquer coisa imunda sobre sexo. Saí tão nervosa de lá que não resisti a uma recaída e acabei comendo um sanduíche na volta para casa. Assim que entrei, corri ao banheiro, lavei com sabão o cabo da escova de dente e o enfiei na boca para vomitar a comida antes que ela chegasse ao intestino. Nunca mais retornei ao consultório.

Minha mãe não tentou me convencer a retomar as sessões. Conversamos e eu concordei em me alimentar melhor. A pouca quantidade que meu estômago aceitava exigia um cardápio mais seletivo. Eu escolhia, no início, apenas alimentos vermelhos, depois amarelos, depois roxos. Deixando a mesa, eu me trancava no lavabo e regurgitava a maior parte da refeição para não sentir vontade de evacuar. Por um bom tempo, a uniformidade da cor entornada no vaso sanitário me fazia fantasiar um ritual de purificação com uma vaga relação com o arco-íris. Minha mãe se resignou a essa regra até o dia em que decidi comer apenas alimentos azuis. Estávamos de bem uma com a outra e eu não queria estragar a boa fase. Prometi mudar. Ela permitiu que eu adotasse a partir de então a letra inicial do nome das comidas como critério de decisão. As opções eram muito mais numerosas. Comia aveia no café, arroz no almoço, almôndegas na janta, banana, bisteca, beiju, caqui, coração, canja, pedia licença para me retirar da mesa, empanturrada de nojo, e, de joelhos diante da privada, despejava o bolo ainda quente, sólido, das minhas mastigações. Minha mãe perdeu de vez a paciência quando alcancei as consoantes finais do alfabeto, e eu adotei, mais uma vez, novas restrições. Num intervalo de poucas semanas, cortei o glúten, tornei-me lacfree, converti-me ao veganismo, mas continuava a comer tanto que precisei redobrar às escondidas os abdominais, apesar dos machucados que descascavam as minhas costas. Num jantar, levantei-me dizendo que já tinha comido o bastante, e minha mãe enlouqueceu de repente como se eu sequer tivesse tocado na comida. Com uma colher cheia de lentilhas, me perseguiu pela casa, esbarrando o quadril bovino nos móveis, enquanto eu tentava, quase sem fôlego, escapar do seu curral. Duas mulheres enormes agindo como crianças, era o cúmulo. Não sei quanto tempo permaneci desmaiada. Abri os olhos deitada numa cama de hospital com uma agulha espetada no pulso. Minha mãe chorava, mas eu não parava de gritar que ela não tinha o direito de interferir no que eu faço com meu corpo se estou insatisfeita com ele.

Pouco tempo depois desse episódio, voltamos a atravessar um período de bonança. Recusei-me de novo a voltar à psiquiatra, mas, em compensação, retomei as refeições normalmente, sem negligenciar a atenção com a forma física. Antes de comer, eu consultava, pelo telefone celular, a quantidade de calorias de cada porção, e calculava a gordura que precisaria queimar depois com a ginástica. Percebia o descontentamento da minha mãe diante desses cuidados e, sem querer irritá-la, cortava os alimentos em pedaços bem pequenos e os espalhava pelo prato para dar a impressão de que tinha comido quase tudo. Eu punha um na boca e contava quantos ainda restavam, enquanto minha mãe repetia que a receita levava só um fio de azeite, um pingo de manteiga. Outra vez eu saía da mesa e subia ao banheiro, outra vez me ajoelhava à beira do vaso sanitário em cujo fundo mirava meu reflexo trêmulo antes de vomitar em mim tudo que tinha comido. De vez em quando, eu reconhecia, na figura formada pelos restos azedos que flutuavam antes da descarga, o rosto desapontado da minha mãe. Eu a xingava por ter destruído a família, depois pedia desculpas, e as minhas lágrimas iam aos poucos dissolvendo a expressão culpada da fisionomia dela. Com o tempo, aprendi a respeitar o fato de que ela pertence a uma época em que as pessoas eram menos fotografadas e não precisavam preocupar-se tanto com a aparência. Eram tempos mais fáceis para as mulheres, mas as coisas mudaram e ela só percebeu isso quando ficou sozinha, se é que percebeu. Andando na rua, pressinto ao redor a vigilância dos olhares e, quanto mais me empenho em alcançar o peso ideal, mais estes olhos me desafiam a provar que mereço ser olhada. Às vezes, não tenho coragem de sair de casa sem usar debaixo da blusa uma cinta modeladora para disfarçar os excessos e simular um pouco da atitude confiante que as pessoas magras têm.

Faz três semanas que deixei completamente de comer. Digo à minha mãe que vou almoçar no quarto e, uma hora depois, desço com o prato raspado, sujo. Ela me espia de esguelha enquanto assiste ao telejornal, com as mãos descansadas sobre a barriga cheia. De início, eu virava os pratos no vaso sanitário e acionava a descarga várias vezes. A comida descia num redemoinho colorido, eu via os grãos de milho, de feijão, os pedaços de cenoura, de beterraba, os flocos de arroz, as tiras de couve, suspensos na transparência azulada do desinfetante, e imaginava os destroços de uma cidade feliz revoando num tornado. Depois de algum tempo, suspeitando de mim, minha mãe passou a colocar coxas de frango, talos de brócolis e outros ingredientes duros nas minhas refeições, certamente para dificultar os despejos. Logo o vaso entupiu, a comida boiava na água alta, e eu não conseguia olhar os pedaços soltos sem imaginar as fezes em que eles poderiam ter se transformado dentro de mim. Enfiava às vezes um cabide no fundo do vaso e puxava as sobras molengas que vedavam o vão de escoamento. A situação não melhorou muito e tive que parar com aquilo. Comecei a guardar a comida nas gavetas ou embaixo da cama até os fins de semana, quando saio de casa para cumprir a rotina de exercícios ao ar livre. Levo a comida dentro da bolsa, forrada por dentro com sacos plásticos, e busco o cesto de lixo mais próximo para esvaziá-la.

Nesses dias, fora de casa, já me aconteceu algumas vezes de ver o meu pai. Sua silhueta esbelta se desenha como uma sombra que se desobscurece pouco a pouco, e logo seu rosto risonho se propõe, nítido e próximo, no clarão da rua. A emoção me dá uma tonteira que me obriga a sentar no chão e fechar os olhos até que os fantasmas se reagrupem. Quando me recupero e tento reencontrá-lo, ele se foi. Eu sei por quê. Encolho um pouco mais a barriga, mas continuam a me sobrar esses centímetros, essa dobrinha quando respiro, igual à minha mãe. A papada, o culote, a genética. Ela quer que eu acabe como ela, as duas imensas, preenchendo o vazio da rotina. Então eu volto para casa de olhos fechados, à espera da noite, para não comer tanto sol, para não explodir de tanta luz.


Alexandre Arbex nasceu em Resende (RJ) e cresceu no Rio de Janeiro. Mudou-se para Brasília em 2009, onde vive desde então. Publicou o livro infantil O livro (Casa da Palavra, 2001) e o livro de contos Da utilidade das coisas (7letras, 2016), finalista do Prêmio Jabuti em 2017. Foi por duas vezes finalista do Prêmio Off-Flip e publicou contos em coletâneas e revistas nos últimos dez anos.