“pia limpa”, conto de dayse oliveira

tinha uma bica que nascia no pé da rua e desaguava na casa de Lúcia. minha cabeça de menina nunca entendeu como aquilo era possível, mas meus olhos infantis molhavam juntos. via magia na água, já percebeu isso? muda de forma, muda de gosto, nasce de dentro da gente já temperada. aquela água, no entanto, era fria como a da torneira da pia de minha mãe no final do mês de junho.

aos sete anos, eu aprendi a lavar louça. a pia metálica parecia também uma panela a ser areada, polida pela esponja. minha mãe gostava de brilho, no chão e nas panelas, então a gente tinha que lavar forte, até se ver refletida ali no fundo. eu fui a melhor lavadeira de louças de minha casa.

no pé da rua ficava a casa de Maria Ângela – quando eu era criança eu tinha certeza que era tudo um nome só, assim ó: mariângela! ela cozinhava os melhores bolinhos de chuva da rua 13. no começo, eu não entendia se era possível fazer bolinho sem fazer chover, então eu torcia para cair uma tempestade doce, mesmo que isso dificultasse a chegada à casa de Ângela.

a rua 13 era uma ladeira grande demais. acho que é a mais alta do mundo, mas eu não posso provar. quando a gente chegou ali, tinha muita árvore e muito barro, diziam que foi fazenda de não-sei-quem. chegaram no mesmo tempo a minha mãe, a minha madrinha, a Ângela e a Nerci. cada família comprou o seu terreno e começou a subir sua casa – a da minha mãe começou pelo banheiro porque era a parte mais urgente. um dia, antes do banheiro ficar pronto, roubaram o vaso sanitário. a história foi sendo contada de vizinho em vizinho, de terreno em terreno, até que o trouxeram de volta. parece que havia mais justiça naquele tempo.

a rua 13 começou de barro, daí não tinha carro que subisse. mas ninguém tinha carro também, então esse era um não-problema. vez ou outra algum passava, o que era motivo de curiosidade para os adultos e chateação para as crianças, que precisavam parar de jogar bola. depois de alguns anos e muitos tombos, numa campanha eleitoral, prometeram botar pedras no chão. parecia bom, a gente ia poder brincar quando chovesse sem apanhar em casa pela roupa enlamaçada. deu certo, menos a parte de brincar na chuva – que essa as mães realmente não deixavam.

choveu forte naquela tarde. lá na casa de Ângela era telha de amianto, então parecia que a água ia invadir a cozinha a qualquer momento. a visita, quando era mulher, era recebida na cozinha, ambiente de conversas longas e açucaradas. eu pensava que a cozinha era um ambiente feminino. minha mãe não gostava de fazer doces, então eu sempre comia na casa das vizinhas (bolo mole era meu preferido). aquele dia tinha bolinho, açúcar, canela. a chuva não passou e ficamos um pouco mais, ou muito mais, eu não sou boa observadora do tempo. quando a água estiou, minha mãe chamou para subir o morro. na saída, cruzamos com o marido de Ângela. cheirava a álcool e ria muito, tinha um jeito homem de rir. subimos.

fui lavar a louça enquanto minha mãe temperava a carne. a subida tinha me cansado, eu não queria lavar. no terceiro copo ensaboado, eu ouvi um barulho – “mãe, você ouviu?”. nenhuma resposta. eu, criança medrosa, quebrei um copo. era sintoma. “ei, mãe, tem alguém chamando no portão”. e a gente desceu correndo tão rápido que eu nem consegui contar os paralelepípedos, as pedras do chão. era na casa de Ângela. ela apanhava pela pia suja, louça empilhada, acumulada desde cedo. eu fui lavar, mas minha mãe não deixou. eu gostava de lavar a louça e ali não consegui saber por que o marido não buscava no armário um prato limpo para jantar.

foi uma das noites que eu dividi minha cama com a Maria Ângela.

eu achava que todas as águas do mundo estavam conectadas. então, tentava explicar que a bica onde a gente bebia água também dava na cozinha de Nerci. Nerci era cearense e morava ao lado de minha casa. nenhum muro era alto o suficiente para isolar os vizinhos, então a conversa sempre aquecia os varais durante a lavagem de roupas. quando minha mãe deixava, eu me sentava na escada para ouvir as histórias úmidas. aquele Ceará de Lúcia não se parecia com as praias de Tropicaliente – mas a São Paulo que eu vivia também não parecia com a da tevê. Nerci tinha uma voz adocicada, era bom ouvi-la falar, cantar, até reclamar. parecia uma voz de feitiço de sereia do mar.

um dia eu ouvi Nerci chorar e não gostei. nunca tinha reparado que a nossa voz piora muito no meio da água. ela não gritava, mas eu percebia a amargor invadindo a doçura da voz. fiquei na escada, como fazia ao vê-la estender roupas. rezei para que ela não precisasse mais chorar, mas antes do meu amém veio o grito! alto, doído, assustador. ela saiu no quintal de camisola rosa, quase na altura da panturrilha, com um urso sonolento estampado na frente. era bonita, a roupa e a Lúcia. só o choro que não. quando eu vi, ele a atingiu com a mão. minha mãe tentou ajudar, mas antes me tirou dali da escada. dessa vez eu ouvi o motivo: ela tinha se deitado antes dele chegar. ele também cheirava mal, tinha uma mão enorme e olhos enraivecidos.

eu ainda não entendia sobre as mulheres, mas me lembro que elas cheiravam bem, tinham aroma de feijão fresco, de arroz novo, de bolo de milho com café, aroma amarelo de cuscuz. elas falavam muito e eu gostava demais de escutar. as mulheres limpavam suas pias e faziam nascer histórias. entre a lavagem dos pratos e do pano de pia, minha mãe falava de minha avó, de minhas tias e das histórias de Minas Gerais. a minha preferida era a da enchente: choveu tanto que a água invadiu a casa de minha avó, molhou móveis, quebrou coisas, derrubou a porta, fez ela chorar. da porta quebrada, minhas tias fizeram uma prancha e saíram a navegar na enchente. cada história traz sua própria verdade, sua própria cor.

lavar louça foi herança sem morte. aprendizado que cada mulher de minha família entregou a outra. eu achava que era uma sabedoria universal, mas descobri que homens não lavam louças. tolos, desperdiçam ralo abaixo a magia que nasce ali, na palavra trocada à beira da pia. talvez porque eu tivesse antes entendido de histórias ensaboadas que de limpeza, lavar louça passou a ser uma magia para mim.

mesmo nos dias de sol, a violência subia a rua 13. na verdade, diferente dos bolinhos de chuva mergulhados em canela e açúcar, eu nunca encontrei um fio justo amarrando o que acontecia com aquelas mulheres. mas era como um fantasma invisível visitando casa após casa. ele também atravessou a porta e encostou no nº 109, onde minha madrinha vivia. família grande, de muitas mulheres, sempre cheia de vozes, sempre cheia de louça na pia. ele chegou diferente naquele dia, não beijou ninguém. era um dia difícil de trabalho, o preço do mercado vinha assustando todo mundo. na saída, pediu um adiantamento para comprar mistura para o final de semana. o dinheiro não chegou em casa, ficou no bar no pé da ladeira. não tinha carne e a própria carne dela foi quem pagou. foram nove cortes, eu contei. minha mãe a levou para nossa casa e eu dormi na cama de minha mãe. nesta noite nas conversas na cozinha não tinha riso. de manhã, minha madrinha trançou meus cabelos, as mãos macias faziam cócegas na minha cabeça. eu chorei quando pingou uma gota vermelha na minha roupa, mas não a deixei saber.

eu nunca vi medo nos olhos delas. e se elas não tinham, eu também não. aos 7 anos eu aprendi a lavar louças. aos 6, eu aprendi a ler. da magia de juntar palavras, de botar som ao lado de som até que formasse uma coisa bonita feito a música, feito a poesia, feito a história. eu aprendi que contar histórias era um jeito de não morrer. no papel, a gente vencia a vida, ganhava ares de eternidade. contei a minha mãe que seria escrevente dessas mulheres. e foi assim que cheguei até aqui, disposta a fazer coro com a doçura delas.

no dia que a mariângela dormiu em casa a gente chorou juntas. eu, menina, ainda tateava a sabedoria de mulher. ela dizia que queria ainda ter minha idade para pegar uma estrada diferente, para mirar o pé noutro rumo. e eu queria também que ela fizesse, que o esforço de subir a rua de paralelepípedos abrisse caminho para uma viela, de mudança, de passagem. acontecia, eu sabia que acontecia. fiquei imaginando os pés dela por debaixo da coberta. como devem ser os pés que desenham novos caminhos?

choveu dentro e fora de mim quando a última corda foi amarrada no caminhão de mudança. vi a geladeira branca grudada no guarda-roupas, vi as cadeiras de pernas para o alto, apoiadas sobre o tapete colorido em que eu adorava me sentar. mariângela conquistou seus pés de vento, era hora de plantar vida em outro lugar. ela foi uma das minhas primeiras despedidas e, penso agora, foi também de minhas melhores amigas. quando o caminhão azul ligou, ela chorou também. mas foi a primeira vez que havia riso no choro – e eu entendi que dava para ser feliz e triste ao mesmo tempo. como eu fui ao gritar: você ainda vai fazer bolinho de chuva pra mim, mariângela?

nada me abala mais do que as lágrimas daquela que foi a primeira a me olhar nos olhos. vi minha mãe chorar ao acolher as mulheres, ao olhar para nós, as suas meninas, e rezar para que uma sorte diferente nos encontrasse pelo caminho. ela que me ensinou a lavar os pratos também me ensinou que a cozinha era espaço sagrado, lugar de alquimia, de descoberta e de limpeza. limpeza não é obrigação, é renovação. era assim que ela dizia e eu aprendi. ainda lavo tudo até me ver no fundo da panela, até doer de entupir a pia e eu parar. parar para limpar. e voltar. mãe, eu estou pronta, a pia já tá limpa!


Dayse Oliveira nasceu no Capão Redondo, periferia sul da cidade de São Paulo. Tem formação em Jornalismo e é estudante de Letras na Universidade de São Paulo. Tem contos publicados em revistas independentes e em coletâneas.