Ricardo Lísias: “não invadir o espaço do leitor”

Depoimento concedido a André Balbo, editor da Lavoura

Qualquer um começaria essa apresentação dizendo que escolher 5 livros é uma tarefa ingrata. Claro que é, mas tenho razões para acreditar que dependendo do autor, escolher um único livro no interior de uma obra complexa e uniforme é tão difícil quanto deixar Franz Kafka de fora dessa lista. Se não for mais…

Quando foi o caso, escolhi um determinado livro (para Beckett o mais famoso, e no que toca a Vila-Matas, o último publicado aqui) para representar meu interesse maior.  No caso de Houellebecq, ainda, pensei nele como representante da literatura francesa contemporânea, para mim uma das mais vigorosas e que oferece novidades mais eficazes. Os outros dois livros significam realmente muito para mim.

Não me sinto bem tentando estimar como esses livros teriam influenciado meu trabalho criativo. Há bastante tempo procuro outro tipo de texto para isso. Minha intenção é, ao mesmo tempo, uma ilusão: não invadir o espaço do leitor. Aqui, preferi simplesmente ser um deles.    

Ulysses, de James Joyce

Antes, eu tinha receio de dizer o quanto gosto desse livro, por causa do entulho que se formou sobre ele: as pessoas o consideram difícil, chato e acreditam que alguém só pode dizer que gosta do clássico de Joyce por esnobismo. Não é nada disso. O livro é muito divertido e comovente. Para mim sempre foi uma espécie de álbum das formas literárias que seriam largamente apropriadas e desenvolvidas pelos principais autores do século XX. A frase “tem tudo aqui” pode até ter virado um clichê, mas não perdeu a verdade. Para mim esse livro é mais do que uma declaração de amor à literatura: é uma demonstração de que, se ela não pode expressar tudo, talvez esteja bem perto.

As ondas, de Virginia Woolf

Acho que Woolf é um dos poucos nomes do momento heróico do modernismo que foge ao guarda-chuva criado por James Joyce. Há em As ondas algo de muito particular. Tenho dificuldade de encontrar as origens desse mistério tanto no resto da obra dela, quanto nos autores de seu entorno. A precisão técnica também não é suficiente para dar conta do meu encantamento. Marcel Proust é o autor que eu colocaria nesse campo, além de me arrancar sempre algumas gargalhadas constrangidas. Aqui, dou um valor decisivo para o inexplicável.

Esperando Godot, de Samuel Beckett

Adoro a peça, mas sua escolha foi estratégica: fui convidado a escolher cinco livros, mas em alguns casos a minha ligação é mais com uma obra. É o caso de Samuel Beckett. Confesso que não tenho tanta atração pelos outros livros de James Joyce quanto pelo Ulysses. Talvez isso se deva exclusivamente à intensidade com gosto do livro. Já no caso de Beckett, não tenho exatamente um livro preferido. O que me importa nesse caso é a trajetória da obra. Consigo enxergar um caminho coerente dos primeiros livros, um pouco mais narrativos, aos últimos, absolutamente afásicos. A obra de Beckett me fascina. Confesso que em momentos de maior angústia – e que não são poucos – tento esconder-me neles, ou talvez fugir.

Mac e seu contratempo, de Enrique Vila-Matas

É o último livro publicado no Brasil do grande escritor espanhol. Do mesmo jeito que o anterior, aparece para representar a obra inteira, que das que pude conhecer talvez seja a mais interessante do nosso tempo. Aqui, não temos mais exatamente um gênero literário específico, o que acaba causando a dissolução inclusive das outras bases. Para Vila-Matas falar em ficção ou não-ficção é um atraso. O melhor é deixar o leitor buscar suas próprias conclusões, oferecendo subsídios de ampla natureza. Todos os seus livros merecem atenção, mas outro notável é Não há lógica em Kassel.

Submissão, de Michel Houellebecq

Aqui, não escolho um livro pela obra. Embora ache todos os seus livros interessantes, os dois últimos são muito superiores aos outros. Houellebecq parece compreender não apenas diversos aspectos da cultura contemporânea como, com bastante habilidade, cria uma literatura com forte poder de intervenção, tornando seus livros objetos culturais e não apenas “representação” literária. Por isso incomoda bastante. Se não utilizei seu livro como representante da obra, quero deixá-lo porém como sinal do enorme poder da literatura francesa contemporânea.  Acho que o século XXI está vendo uma reação forte dos franceses. Aqui eu poderia ter substituído Houellebecq por Sophie Calle sem nenhum prejuízo.


Ricardo Lísias é escritor, autor de A vista particular (Alfaguara, 2016) e Sem título – uma performance contra Sergio Moro e criador do “Eduardo Cunha (pseudônimo)”.