“Labirinto”, conto de Paulo Abe

No começo era o vazio, o vácuo, o nada.

Depois de tal zero, veio o um.

E, por fim, o dois.

Ainda quando a primeira caverna orgânica só conhecia o silêncio durante toda sua existência, uma gravidade em seu interior sempre agia sua vontade, estabelecia seu destino na ressaca da vida, da geração. Essas ondas de força sempre estavam à procura de uma palavra, como o espírito a entrar no barro, o silêncio a encontrar um corpo e, então, a vida; e, então, Adão. Não à toa, nos segredos da língua hebraica, o primeiro homem é a junção de Aleph e Dam, o espírito e o sangue; e a segunda letra do alfabeto é Beit, a casa, pois justamente depois que o silêncio entra na carne, no mundo, se tem o lar da Divindade, isto é, a boca, o eterno palácio da palavra.

Tal história narrará este encontro do etéreo com o mundano, e o que vaza de seu delta. Tamanha foi a mudez do ventre que a quietude de dois corpos despertou algo e, no silêncio do espírito, o vazio produziu o um. Contudo, mesmo o Aleph significa tanto um quanto mil, o único e o múltiplo, o início e o fim. De modo que nesta boca ainda calada da existência se formava pouco a pouco, um corpo, um ser, um filho.

Minúsculo, tal grão de vida ainda não tinha nome, sua existência era ignorada por toda a população do mundo, sem falar em toda a vida animal e demais. No fim, todos nascemos numa completa solidão. Estamos ali e ninguém tem consciência. Nascemos principalmente como fantasmas; primeiramente como aparições.

Este é o caminho do espírito para o corpo. O um. Entretanto, ainda aqui a multiplicidade se dá, o “mil” concomitante, pois, precisamente neste instante no primeiro lar da vida, algo se transforma. Não é possível conhece essa sensação de se estar ali, apenas que uma sensibilidade começa em algum ponto a se desenvolver. Sim, depois de algum tempo, que não é sequer possível medir neste minúsculo espaço que preenche-se de si, aquele grão se divide, se multiplica, se faz – por razões ou desrazões misteriosas – dois.

Tal sensação – ainda que a palavra não corresponda ao fenômeno – é estranha. Talvez fosse o primeiro fato que pudesse estabelecer se uma mente já ali estivesse formada. Mas estamos especulando, então, sim, uma proto-mente sentiu a estranheza da vida, sentiu o outro pela primeira vez e, de uma mesma forma, sentiu toda a alienação existencial em si. O outro e si. Vice-versa. Talvez pela primeira vez pudessem estabelecer tal divisão, tal limite, tal horizonte ôntico. E, ainda assim, se perguntariam pelo resto da vida essa questão.

Difícil foi também estabelecer quando corpo, mente e existência, ao se dividirem a si próprios, perceberam-se de certa forma já alheios a si mesmos. Contudo, lá estavam naquele momento reafirmando com o estranho, o, então, intransponível, o primeiro abismo da vida: o “outro”.

Claro que a caverna do silêncio, que era sua própria mãe, nunca lhe foi um outro ser. Afinal, cada um adveio de e ainda ambos se conectavam como um corpo só. De maneira que, ao mesmo tempo em que apenas sentiam o que se poderia chamar de ambiente, nunca a perceberam de fato; nunca haviam visto seu rosto. Sua vinda a este universo poderia parecer apenas um favor, um milagre, uma boa ação, mas, antes, era um disparar torrencial para a estranheza do mundo e sua solidão.

Neste segundo momento, a divisão de um mundo completo se fez. Muito certamente poderia se dizer que o tempo nasceu ali com o primeiro movimento espacial naquele vazio agora preenchido por duas entidades. E veja como essa pequenez biológica ainda pode ganhar grandes nomes, como “ente”, justo para confirmar: sim, neste instante, eles estavam ali.

Essa mesma espacialidade talvez fosse a única coisa que pudessem reconhecer: aqui. E o mundo era isso. O todo era isso. O único verso. Contudo, na escuridão do espaço – pois era exatamente do que aquilo se constituía –, era possível reconhecer esse outro, estranho, ou melhor, talvez ainda o Unheimlichkeit freudiano. Isto, pois, de fato, aquele “ali”, que se reconhecia também como um, era sem dúvidas estranho, no entanto “estranhamente familiar”.

Reconhecer tal fato mudaria qualquer relação que se poderia estabelecer naquele mundo. E, de certa maneira, assim o fizeram. Mas ainda em seu incipiente silêncio, giraram um sobre o outro, como dois sóis apagados na própria escuridão, naquela galáxia do ventre. Operavam uma órbita de locus suspectus, o único modo de – e a palavra aqui é muito oportuna – re-conhecer de si próprios.

Pouco se sabia um do outro. Saber ainda era uma atividade completamente alheia a eles, mas lá algo análogo acontecia, mesmo neste microuniverso. Cada detalhe neste mundo é de suprema importância. De modo que, mesmo que não se vissem por completo, que o cheiro fosse algo ainda eclipsado pela própria liquidez do espaço, podiam – e aqui a palavra novamente é exigida de tal forma – pré-sentir um ao outro. Sim, a presença de ambos era pressentida. Era o ato em si do sentir paradoxalmente existindo também com o do pressentir, uma vez que a consciência temporal ainda não estava desenvolvida, tendo por então uma reminiscência de sua sensibilidade. Sua ação era sua memória. Sua memória era sua ação. E sentir era dançar cronologicamente em um mundo até então oculto. Mas onde estavam, logo naquele único “ali” que conheciam, descobriram o “eu” e o “tu”.

De repente, o universo não parecia tão solitário, tão grande e desconhecido. Ambos tinham uma segunda certeza que nada poderia fazê-los esquecer: que tinham um companheiro. Ainda que em silêncio, uma linguagem era desenvolvida, mesmo que de maneira simples. Mas dizia claramente que não precisavam mais girar, vagar e fugir um do outro em tamanho espaço vazio. Poderiam agora, de certa maneira, interagir e, sim, cum panis, isto é, dividir o pão.

Suas rotações e translações cada vez mais se amansavam naquele mundo, não havia motivo para pressa, pois não havia por que se afastar ali. Então, sua ordem era outra finalmente. Mesmo que não soubessem ainda o que era cima, o que era baixo, conceitos tão alheios, distantes e, no fundo, sem utilidade para si, cada um ocupava o que antes era vazio a seu bel prazer. Aqueles dois corpos – ali, na terra e na galáxia, celestes – já viviam. Isso mesmo, já viviam.

O que poderia se chamar de tempo então passou, e pouco a pouco faculdades antes adormecidas começavam suas alvoradas. Claro que essas nuances eram praticamente imperceptíveis, mas a noção de agora – muito mais presente em si – acentuava tais experiências que então tinham.

Seus olhos se abriram e uma luz sépia por vezes atravessava aquele véu para o mundo exterior, sua primeira visão de uma abóbada celeste. Os tremores que antes sentiam agora eram acompanhados de algo que futuramente chamariam de som. O calor, o frio, até o gosto e o cheiro se aguçavam na medida em que qualquer pequeno passo em tais percepções era saltos em sua vida subjetiva, sua caverna das sensações.

Ambos vivenciavam o mundo agora juntos, como companheiros. E sentir essas novidades tanto dentro, quanto fora de seus corpos pela primeira vez não foi uma experiência assustadora. Conheceram também pela primeira vez sentimentos como coragem e reconforto.

Entretanto, qualquer consciência de uma história circular ou mesmo escatológica estava fora de seus limites. Até onde lhes cabia, o mundo era aquilo; a própria história – se é que pensavam nela como algo além do básico conceito de tempo – era aquilo mesmo que viviam ali. Mas em certo momento – pois era justamente o que sua história era: um eterno sentir do instante – o mundo mudou novamente, mas também como se fosse pela primeira vez.

Aquilo foi as boas-vindas que tiveram do medo, mas logo reconheceram que não. Aquele fenômeno que agora vivenciavam era o estranhamente familiar. Sim, era a própria sensação que sentiram um pelo outro quando a princípio se encontraram. Contudo, agora já estavam desenvolvidos, poderiam – no limite de suas capacidades – pensar, ponderar, analisar aquilo que lhes acontecia.

De fato, tal estranheza agora se direcionava ao seu próprio mundo. Este do qual sempre fizeram parte e formavam uma unidade. Todavia, neste instante tão novo e desconhecido, o reconheciam não como algo mais inanimado, mas senciente, vivo, como “alguém”. Essa transmutação os assustou: de algo para alguém, algo que sempre esteve ali, isto é, alguém que teve sempre sua presença oculta na onipresença. Porém, não se explicava por que, depois de tanto se esconder, agia de tal forma; por que não agia como quando agiram um com o outro quando finalmente se desvelou a existência alheia. Talvez fosse sua forma de correr, como eles próprios fizeram. De qualquer maneira, a primeira ação deste mundo foi uma e apenas uma: a violência.

Logo dentro de si cresceu em ambos o conceito de inimigo, pois propriamente o que tinham de mais precioso naquele universo, um ao outro, a relação estava para ser completamente destruída por forças descomunais, oceânicas e desproporcionais. Um deles, talvez o que fosse se chamar um dia Jéssica, talvez o que fosse um dia se chamar Jaqueline, talvez o que fosse um dia se chamar Ingrid, talvez o que fosse um dia se chamar Marthe, talvez o que fosse se um dia chamar Marcos, talvez o que fosse um dia se chamar Paulo, aquele anônimo no cosmos estava sendo expulso do único mundo possível, do único mundo que existia, um mundo inominável desta maneira.

Encarava para si, ainda que impotente de sua situação, o pior de todos os destinos. Se saía ou entrava, não o podia saber. Todo filho de fato é um Jonas, um capitão Ahab, todavia não sabia se era Perseu ou se era o minotauro. Talvez o próprio labirinto fosse a  representação do inimigo. Mas não era possível saber se escapava ou se mergulhava no próprio perigo. Era um mundo sem fio de ouro, sem norte, direção. No entanto, havia apenas agora uma única certeza no emaranhamento do destino. De modo que aquela primeira vítima de sua sorte passava agora pelo portal, mas não por ver a luz pela primeira vez, por respirar o ar pela primeira vez, por cheirar, ouvir ou mesmo por estar de pé pela primeira vez que gritou, sequer por encontrar familiares que sempre lhe seriam estranhos, mas porque segurava e teve de soltar uma pequena mão que lhe era tão conhecida; irmão.


Paulo Abe é mestre em filosofia pela USP e autor de três romances, entre eles Sexo sagrado, finalista da Primeira Maratona Literária do Carreira Literária, da Editora Oito e meio. “Labirinto” faz parte do livro de contos Um corpo divisível (Penalux, 2019), vencedor do Programa Nascente da USP em 2018.