quatro poemas de diego vinhas

terrorama

o filho só assume as sandálias do pai
(a aldeia, a tamareira da infância)
quando se apaga na terra, e, antes dela,
no fantasma da terra, e, antes, antes do alfabeto,
em alguma certeza que se mantenha
de pé, depois dos bombardeios e além
de solo, sangue, pólvora, pai.
uma certeza como: o Senhor dos Exércitos
nunca dorme, a ordem do martírio
regenera, belígera, a soberania
de quem não assinou o “dai a césar”,
o expurgo pelo fogo (alguém em pedaços
não é alguém de joelhos), fiat lux
que o dedo sobre o botão (um leve
impulso elétrico) lança ao peito atado
com silver tape e explosivos plásticos.
o mesmo cheiro de gordura queimada
dos animais que Abel ofertou ao
deleite do Todo-Poderoso
agora imanta o ar dos destroços, o
arranjo abstrato de ossos, tripas, membros
justapostos, como brinquedos soltos
que se esbarram, mudando a geopolítica
do interior da cesta de praia
na mão de uma criança que corresse,
sem paciência, em direção ao mar.
(um azul militar no domo do céu
faz hora-extra pela noite que, em vício
de noiva, se atrasa. na manjedoura,
o primeiro choro, ainda nu
e desdentado, do homem-bomba.)

just google it (god bless america)

                              ) até o incidente em Atlanta na semana passada, os EUA estavam há um ano sem um massacre de grandes proporções em áreas públicas, segundo o Violence Project, um projeto da Universidade Hamline que estuda violência.

                              ) Florida man in “no, seriously, I have drugs” t-shirt arrested for possession of drugs. Florida man stabs tourist despite having no arms. Florida man steals BMW after he’s told he can’t buy it with food stamps. Florida man calls 911 to report lack of vodka. Florida man arrested for beating drag queen with tiki torch while dressed as member of KKK, now running for mayor.

                              ) em uma história em quadrinhos de 1951, o ratinho mais querido do mundo se tornou um legítimo traficante de drogas! em Mickey Mouse e o Homem Remédio, Mickey e Pateta descobrem um novo medicamento chamado “Peppo”. a anfetamina disfarçada é tão poderosa que faz as pessoas baterem no teto e rodar em círculos.
impressionado, Mickey decide que a droga é perfeita para um esquema de enriquecer rapidamente.

                              ) é ilegal se mutilar para escapar de um dever. é ilegal se esfaquear com o fim de fazer alguém sentir pena. é obrigatório levar armas de fogo para a igreja, para prevenir possíveis ataques de índios. _________   é ilegal vender os filhos. é ilegal vender o próprio olho. Dallas: é ilegal possuir consolos realistas. é proibido a prática boxe com um canguru. é proibido colocar um contêiner com matérias fecais humanas no lado de qualquer rodovia. ___________   o estado não tolerará que alguém dê uma mordida no hambúrguer de outrem. disparar mísseis em automóveis é ilegal. acordar um urso com o fim de tirar uma fotografia é proibido (embora não seja ilegal atirar em um urso) __________ é proibido pescar com armas de fogo. é proibido servir, em um restaurante, torta de maçã sem queijo. fazer de conta que os pais são ricos é ilegal. é contra a lei amarrar uma nota de um dólar em uma linha, para puxá-la quando alguém tentar pegá-la. quando, no trânsito, um policial fizer a pergunta padrão “você sabe por que mandei você encostar?” e o motorista responder “se você não sabe, não sou eu que vai lhe dizer”, este será automaticamente multado em US$ 300.  ___________   é permitido ao homem ter sexo com um animal, desde que não pese mais de 18 quilos. ter intercurso sexual com um porco-espinho é ilegal. sexo só é permitido na posição missionária e sem óculos escuros. é ilegal fazer sexo com virgens em qualquer circunstância   _________ em Blythe: só tem permissão para usar botas de cowboy quem tiver pelo menos duas vacas.  o homem pode bater na mulher, mas não mais que uma vez por mês. é proibido bater na mulher nas escadarias do tribunal no domingo. é proibido mentir sobre o seu signo astral. é proibido fabricar imitação de cocaína. é proibido vender cadáver sem uma licença. é terminantemente proibido pronunciar “Arkansas” incorretamente.

                              ) I can’t breathe.




[do livro Corvos Contra a Noite:]

antropoceno

o monstro
investiu bem na mobília
em L e aos fins de semana
desmonta-se em dança e álcool
sob o globo espelhado.
lembrando das férias no exterior
(os postais de Abu Ghraib)
ele é um self made monster
e manobra o seu pênis maciço
para desbravar empreender
arrombar qualquer fronteira
do sucesso.

enfeitiçado pelo sotaque
do seu salto agulha
pontilhando no assoalho
uma canção rítmica de poder,
com uma das mãos nas compras
(sapatos nunca são demais,
um avental lindo para aventuras
na cozinha) e a outra a deslizar
em afago na própria barriga
expandida, o monstro sente
os chutes e as batidas ávidas
do coraçãozinho.

via satélite

um míssil
Tomahawk
usa tecnologia
GPS para
encontrar
seu endereço
com uma
margem
de erro de
10m (bem
melhor que
eu pedindo
informações).
nessa farta
mesa de café
colonial há
um véu de ar
que guarda
sob si (como
uma ave a
prole sob
a asa no
ringue da
chuva) cinco
séculos de
samba, suor
e eugenia (
república de
gente ao meio
e árvores
dizendo
adeus)

um
chico
um zé (um
mohamed
um al-algu-
ma-coisa)
adia o mijo
(profissão:
alcoólatra)
e percebe
sem júbilo
que já
passou da
idade do
suicídio.
o avô de
um sabia
o nome
de toda
ovelha cujos
ossos sugava.
o avô de
outro ainda
chamava
o terreno
dos mortos
de campo-
santo (e
essa foi o
primeiro
e último
sopro de
poesia
que
sobrou)

o mundo é
tão grande que
dois irmãos
nunca se
conhecerão
completamente.
o mundo
é tão tênue
que livros
sempre serão
perigosos.
o mundo é
tão óbvio
que se mutila
por pão e
passaporte.
o mundo é
tão pequeno
que em
qualquer
idioma se
pronuncia
igual o
silêncio a
cada bolsa
revistada
ao fim do
expediente.


Diego Vinhas nasceu em Fortaleza em 1980. É graduado em direito pela Universidade Federal do Ceará, trabalha como defensor público e publicou os livros de poemas Primeiro as Coisas Morrem (2004), Nenhum Nome Onde Morar (2014) e Corvos Contra a Noite (2020), todos pela editora 7Letras.