“ressuscitar cazuza”, conto de renato zapata

Sonhei que dançava balé em Moscou. A plateia em êxtase a cada uma das piruetas que eu dava fielmente ao acordar chutando os lençóis: vinha dali qualquer alento ou agulhada que, por mais invisível que fosse a mim – um incenso? – anestesiava a música deixada ontem pelo Rômulo, no repeat, pra que dormíssemos. Não sei se todos os russos gostam de aplaudir, aqueles muito. Teatro lotado, cadeiras confortáveis, a cidade em sonífero prestes a congelar. Embelezava, porém, a neve, o meu corpo tropical, e a vodca alargava o caminho até o hotel, lá eu era famoso. Um lorde bailarino! Até arriscava palavras em russo, olha só, eu que nem inglês, e os russos – como pude! Eu que nunca usei sapatilhas, e que observo agora das remelas o Rômulo descarado na cama, e forma-se uma nevasca neste assoalho que é o apartamento dele rarefeito e encharcado por nós madrugada adentro, e adeus. Vida louca, vida breve. Direito à passagem pra acompanhá-lo à Rússia? Não tenho. Me resta assisti-lo dormindo nu como se em bálsamos, eu por sorte ainda um pouco bêbado, e contagioso

– só de raiva mordo bem na carne do teu coração – o importante de quando transamos é mastigar você, só pra isso servem os dentes.

Que trepada! Ao despertar, ele dirá Que trepada! – insensível este teu agrado, a tua doçura antes de partir direto pro inverno, eu respondo na espera de que ele enfim se levante – eu que nunca gozei tantas vezes até me esgotar, e foi horas atrás quando fiz nevar na boca dele onde fervia também o vinho. As quatro garrafas importadas eu travo na língua, paixão cruel, e como eu gosto do seu gosto, Rômulo, na minha barba por fazer você quase me arrancou os mamilos machucando até deixar roxo o saco – que sangre! Fossem só as lambidas e não os arranhões, já amanhece enquanto ele, baforado, impassível, começa a me esquecer porque dorme, as marcas do jantar e toda a lindeza do disco que ele sacou da rolha e ordenou – tira logo a calça que não tenho seu pau por tanto tempo. Noite de verão. Foi o Cazuza que ele escolheu pra enfiar no meu pescoço os caninos onde houvesse mais substância, e embaçamos as janelas e o couro do sofá, em Moscou as cortinas devem ser grossas, felpudas, deve haver lenha nos quartos e fogo à vontade, não importará neste apartamento o calor coloquial de sempre

– de orelha no peito, Rômulo, ninguém pode auscultar o próprio coração – mas você congelou o meu colando a cabeça como se nada ouvisse – só por isso engulo o teu às garfadas.

Tem que apertar entre as virilhas. No meio delas onde começa o pau é que nasce – ele me ensina os truques e me abriga atiçando os poros, tal quando lhe mostrei como se enrola um baseado prensado. Tem que apertar antes de enfiar lá o dedo lá pra cima e me enforcar também com um coice em círculos de atrito, eu que nem beijado um homem tinha, e o Rômulo não teve piedade quando deixou o Cazuza entre a gente e relando daquele jeito a olho vasto, o fogaréu sim a olho nu ardendo nos ombros e nas coxas do Cazuza porque o Rômulo sempre dizia algo no corpo como se fosse o Cazuza, e também na primeira vez que ele me comeu foi aquilo, atrevido um Rômulo de artimanhas, foi o Rômulo ou o Cazuza quem primeiro me vestiu naquela calcinha rosa claro, foi o Rômulo ou o Cazuza quem me destroncou

– a vida é um rastro de pólvora, e nela o quanto de você queimará se nem por dádiva me levar junto – com unhas frescas te cravo na cama as minhas feridas.

Pode seguir a tua estrela. Rômulo sim um bailarino, um conquistador, e apesar do ciúme ante sua façanha no balé de Moscou eu deveria ou não, guiado por certo companheirismo ingênuo, estar também realizado? Grudado no lençol o Rômulo decide me provocar a sanha: resmunga como se estivesse acordando, muda de posição devagar se descobrindo e o que vem depois me parece um gemido. É inevitável o desejo de me juntar a ele, sugá-lo na nuca e descer pelas costas largas à mostra fazendo cócegas, e em seguida um pouco mais nas pernas a minha fonte – eu fui laçado! Enquanto ele sonha com qualquer coisa que não seja o nosso dia a dia, eu acendo um cigarro pra me acalmar, empoleirado na janela ouço uma buzina que me chama de volta. Não! Não me conformo com o seu abandono. Por capricho você manteve as raias abertas pra nós, Rômulo, e se não era pra sempre por que tantas promessas, não dá pra gente se esquecer disso, não dá, assim de repente não, e você ousa trancar o armário

– estiro num cabide os teus pulmões de nicotina, te obrigo a beber leite azedo pra que vomite no cangote dos russos – você um lastro gélido, imprestável.

Não desligo nem troco de música. Levo-o ao cinema e nas costas estão o rolo do filme e a lembrança, nada enferrujada, sedenta é o nome, da fila onde nos conhecemos quando ele, faiscando uma petulância magnética, me disse de surpresa  – as linhas da minha mão habitarão um dia as tuas, ele as virou pra cima e não se confundia, naquele instante eu também podia ler o nosso destino. Quanto ao filme a que assistíamos, lamentamos, era romântico demais, não combinou com a cena que o Rômulo fez abrindo o botão da minha calça, e o volume era uma de veludo amarronzado, eu até tentei me afastar do impulso mas o gesto das mãos dele na hora combinou comigo porque eu me excitava e quis ver se ele estava duro igual ao que me cobrou no segundo encontro – você me deve os ingressos da outra vez, e também quero me embebedar na saída, chorar no escurinho enquanto você se lambuza, e baixei a cara assentindo na ereção que me fez provar o tamanho dele e como entrava na garganta, lúbrica a língua na cabeça lisa um cogumelo, totalmente à vontade sem me importar se alguém na fileira ao lado salivava ou cuspia a nossa indecência

– segure as lágrimas, ordeno a mim, e se penso alto é porque me enlouquece o Cazuza repetindo os versos do que antes chamávamos de amor – ora bolas as tuas, Rômulo, vou furar os teus bagos com a ponta fina de um compasso.

Ouço claques vindos da cama. É a mania dele de colocar uma das mãos, geralmente a esquerda a que bagunça os cabelos no intuito de ajeitá-los, a mão por dentro do lençol enquanto se masturba num ritmo quase imperceptível, e me animo. Se ele acordar o esperado será trepar por um último e terrível gole – que desperdício! De flor em flor, Rômulo, o nosso enésimo desquite sexual, e me faço lembrar de quando ele disse pela primeira vez que me amava, bem cafajeste no quintal onde fumávamos e acendíamos velas e estendíamos passatempos e poemas e canibalismos

– a cidade em carne viva será melhor sem teu desprezo – taco fogo nas tuas roupas, mijo nos teus móveis, amasso tua cara oito minutos contados contra o travesseiro, seu palhaço deslavado de uma figa – se eu te pego, covarde!

Decido acordá-lo. Coragem! Mas meus pés sapateiam a contragosto os cômodos vazios, e num balé imprevisto perfaço a divisão das passadas que dão sentido ao baile, o apartamento é uma espiral de cacofonias, o Cazuza se repetindo nunca é o mesmo e sim um turbilhão de dissonâncias entre o querer e o prazer. Danço ainda mais, canto aos montes, baixinho, não sei parar. Sou bailarino e nada impede os caquéticos aplausos que me veem das janelas vizinhas. Todo amor despedaçado serve de exemplo pra que outro amor ao lado transborde, é o equilíbrio natural do mundo, ou deveria ser. Recolho  apetrechos pelo apartamento, as sandálias, os cadernos, os sonhos todos vendidos tão barato, um quadro – presente meu – e roubo vários maços de cigarro e por fim também alguns perfumes. Amasso da carteira uma carta guardada, escrita ontem em russo pra que o Rômulo guardasse nas malas e lesse por todas as noites

– uma cartilha de como enforcá-lo – puxo os teus cabelos, arranho as cavidades da tua pele, te jogo no precipício da cama que é o chão e te arrasto junto a mim.

Tive tempo pra escolher. Quis me deitar e quase me deitei no abraço que daríamos à nossa arca perdida outros carinhos. Longínquos. Soube assim que o Rômulo já havia partido, que não poderia mais tocá-lo, apesar de estarmos a apenas dois metros de distância. Eu numa cadeira, um barranco. Ele na cama, um contorno. Passo um café que deixo na cafeteira em cima do rádio, o tempo não para, não, do jeito que ele gosta sem açúcar. Chego à porta e desmedido lavo-me às faces. Escolho não olhar pra trás, mas o que faço é permanecer mirando a cabeça do Rômulo, cantarolando pois os olhos estão vermelhos. Troco a música que se repetia há meses. Deixo outra. Um outro Cazuza, não ele, não eu, outro. Não é possível tocar em quem já partiu

– cavalgo na neve, atiro contra o Palácio do Kremlin, seguro nas mãos a tua passagem com destino à Rússia, armo os dedos pra rasgá-la – claro que não.


Renato Zapata é paulistano de 1988. Escritor e jornalista, já publicou os livros Estopa (edição de autor, 2014) e Menino Semente (Movimenta, 2015), além de ter participado de antologias de contos, como Orelhas, do coletivo literário Djalma. É compositor e integra a batucada do Samba do Surdo Manco e Pagode do Pequeno. Em 2021, lançará de forma independente o romance Ensaio Paralelo.