quatro poemas de heleine fernandes

sinhá

você me desejava
não tão secretamente.
queria que minhas mãos
esfregassem as suas roupas
enquanto seus dedos delgados
de veias azuis saltadas
aparentes
se dedicariam à digitação
de palavras de autoridade:
uma carta a um órgão burocrático
um artigo científico
ou até, quem sabe, linhas de alta literatura.
escrevo-lhe agora
o que não consegui lhe dizer
diante de sua nudez:
limpe você mesma
a sua própria sujeira
os suores do seu desejo
pervertido
as nódoas de sangue seco
herdadas de sua família.
minhas mãos
nunca estiveram à venda
em leilão.
não são lenha para queimar.
não são braços.
Elas pertencem a mim
e à linhagem de mulheres
que dominavam as cantigas
e as palavras mágicas
de afogar
e fazer crescer crianças escuras.
veja
de minhas mãos pinga água
que salga
e corta
água que transforma
rocha em areia.
olhe para estas mãos
que não vão lavar
a sua
sujeira
nem acalmar
as suas crianças.

 

iyá

água prateada,
mastiga os corais
devagar.
põe nos olhos areia
ondula a vista
vendada pela barra macia
de sua camisola.
digere o chão
com a baba doce ácida
de sua mucosa
que quebra e se estende
sobre a cidade.
prolonga no corpo,
senhora,
a dormência de seu leite
gelado regenerativo.

me recolhe
em sua bacia de baleia,

Odoyá!

 

papéis de carolina

escrita de coleta
de ferros metais e ossos
para consertar
as estruturas do mundo.
muito bem, Carolina,
você fez tudo certo,
equilibrou o brasil
no alto do seu orí
e subiu a ladeira.
no final dela
lhe esperava a cobra colorida
angorô suspenso no ar.
muito bem, Carolina!
das peles que descamaram
dos seus ombros feridos
você fez emplastros
páginas e páginas
de transformação.
muito bem, Carolina!
nem todos perceberam
que enquanto você catava
tramava e armava
contra os dias de cão.
até os cães sabem defender-se
e você sabia
muito bem
quão poderoso pode ser
o bote da palavra
e quão duradoura é
a ação de sua saliva.
a fome é professora
rígida
que ensina através do trauma.
as mulheres vasculham o lixo da civilização
envoltas em mantos de revolta.
sua revolta sempre foi justa,
Carolina:
a mãe precisa alimentar os seus filhos.

 

stela do patrocínio

uma vida preservada pela voz
espaço mínimo onde habitar.
viver na voz
lavoura de subsistência.
quando não se pode sair
não se pode entrar
não se pode ficar no chão
nem nas paredes
nem na cama
nem no vazio
viver na voz.
Não deixar o corpo ser cemitério
de fantasmas.
Narrar a própria vida
ovular
a mulher fecunda em sua voz
antes da fita K7
antes do corte
dos versos
antes do eletrochoque do confinamento
da amputação do assassinato
das teorias e procedimentos
belas formas
do racismo científico.
antes da doença
e do sequestro continental
a memória ancestral do sopro
o frescor do hálito
poderes milagres
mistérios.


Heleine Fernandes é carioca, nascida e criada na Rocinha. Poeta com poemas publicados na Antologia Cult#1, na antologia Ato poético: poemas para a democracia, da editora Oficina Raquel, e em Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras, da editora Bazar do Tempo. Autora de A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento, publicado pela editora Malê. Professora Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.