“O homem-ninguém”, conto de Gabriel Schincariol Cavalcante

O nome vem antes de tudo, mas nós viemos antes do nome que nos cabe e a ele nos adaptamos na curiosa e complexa engenharia cotidiana de nomear as coisas e de nomear gente, que das coisas é a mais curiosa e complexa. Ao bebê que surge do ventre é dado seu signo, que pode ser ali, de supetão, que seja Carlos, que seja Marlene, que seja o que seja, ou com prévia e cuidadosa elaboração, em honra ao nome do pai, do avô, da avó, da atriz daquele programa ou do artilheiro daquela Copa Libertadores, e então começa a adaptação que perdura, em todo caso, durante toda a vida, porque é a isso que se chama estar vivo, ir remodelando as peças, readaptando e reconstruindo, razão pela qual a massinha de modelar é o brinquedo mais subestimado dessa nossa curta história, já que traz, em si, a própria confecção humana. Agarramo-nos a esse nome que meteram em nossas certidões e vamos construindo tudo ao seu redor, no processo natural, que é tão perfeito e inabalável que, em pouco tempo, todos ouvem o comentário sobre como seus nomes combinam bem com quem eles são, Carlos parece Carlos, Marlene parece Marlene, este paralelepípedo poderia ser chamado de outra coisa além desse nome comprido? Isso tudo é premissa.

Então vá adiante.

Vou, vou. O nome dele não se sabe, foi investigado e o mais próximo que se chegou foi ao reduzido número de três nomes, todos de mesmo final, Gabriel, Rafael e Manoel, e dele não se extraem relevantes características, apesar do esforço contínuo para dar ares de grandeza, são, no fim das contas, as personagens cotidianas que mantêm a manivela girando. Pela dificuldade de nomenclatura e referência, quando dele se falar Ele usarei, assim mesmo, com letra maiúscula, e não acredito que restem dúvidas sobre a existência de minúsculas e maiúsculas nesse português falado, elas estão presentes como no texto impresso e assim espero evitar maiores confusões, sem pretender um ataque direto a quem por direito tem todas as suas referências iniciadas capitalmente, trata-se apenas de praticidade e, enfim, nesse universo restrito não é o protagonista, em alguma medida, Deus em si? São devaneios, eu sei, mas alguns parecem importantes de se pontuar. Ele foi, assim como todos nós, vivendo sua vida da mais ou menos melhor maneira, apressando-se nas conclusões equivocadas e remoendo com calma para depois se desculpar, acelerando o passo na rua do centro e depois se perguntando Eu não poderia mesmo ajudar? sentindo o colapso do peito ao ver o cruzamento na área já nos acréscimos e deixando o cachorro subir na cama no meio da noite, mais por Ele e menos pelo cachorro, porém nesse caminho algo n’Ele parou de responder, parou de reconstruir e remodelar e rebelar, algo n’Ele estacionou, os passos não se aceleravam nem se diminuíam, tudo era inércia passiva de uma xerocópia, nada além de destinatário, e no meio tempo seu próprio nome se perdeu. A senhora da lavanderia, que as camisetas d’Ele tratava com o carinho de uma mãe e as camisas engomava e das calças fazia as barras e as meias costurava, ouviu Ele dizer pela primeira vez seu nome no dia em que se conheceram, e na sua memória se instalou essa lembrança definitiva, e a partir de então ela só O chamou de Daniel, que não é o Seu nome. Ele nunca a corrigiu, por não ser capaz de corrigir, pois a sua natureza não permitia o confronto mínimo, o que é a própria autodestruição em um mundo construído sobre a distinção dos nomes, e assim ele se entregava sem lutar, por não poder lutar, aos desígnios de terceiros, acatando sempre e negando nunca. Todos os conhecidos da lavadeira O chamavam de Daniel, e ele respondia com um aceno de cabeça, um sorriso sem dentes e duas piscadas rápidas. As roupas, no entanto, eram impecáveis, e Ele, ao sentir o cheiro do amaciante bem perto do nariz e fazer na cabeça a imagem da mãe, aceitou ser a partir de então Daniel.

E não há mais ninguém que o conhecesse, para confirmar seu nome de batismo?

Que O conhecesse, você quis dizer.

Isso, perdão, Pai, pois eu hei pecado.

Há quem mais O conheça, mas a história se repete. Ele era contador, no início, mas um dia ficou em dúvida sobre qual marca de desinfetante comprar e começou a encarar a prateleira, até que um rapaz que mascava chicletes perguntou Onde ficam as bebidas? e Ele olhou sem saber o que responder, e o rapaz ainda mascando chicletes emendou Você não trabalha aqui? e sua resposta não pôde ser outra além de um firme Sim, trabalho, e Ele buscou na memória o local das bebidas e instruiu o rapaz, que agradeceu e virou as costas, com a boca abrindo e fechando, e dali em diante Ele passou a ser funcionário do mercado, chegando até ao cargo de gerente, depois de passar pelo estoque, pela padaria e pelo caixa, e em cada um deles foi chamado por um nome diferente, Gabriel, Rafael e Manoel, e quando perguntados os conhecidos afirmam ter a mais absoluta certeza de que aquele era, sim, o nome d’Ele, Gabriel, Rafael ou Manoel, depende para quem se pergunta, e se for à lavadeira, Daniel, que, como já dito, excluiu-se como nome possível.

A solução é simples.

Qual solução?

Para a questão do nome.

Simples, como?

É simples, basta ir até ele e perguntar Como se chama? ou melhor, ir até Ele.

Às vezes atrás da porta em que tanto se espera pelas chaves está a fechadura destrancada, mas não é esse o caso, pois d’Ele não se têm notícias há muito tempo.

O que aconteceu?

O óbvio, não é? Ele, súdito de todos e da própria existência, servo por natureza, obediente, escravo da palavra alheia, vassalo de quem não se proclamou suserano, não se expandiu, como fazem os recém-nascidos, mas passou a encolher, não em idade, mas em Si, perdendo a própria cor, ficando difícil de ver a olho nu, ao perder Seu nome não pôde mais ser chamado e a existir por si só, dependia do outro, como um parasita, e os outros, seguindo suas próprias vidas, reconstruindo e remodelando ao redor de seus nomes, foram, cedo ou tarde, para longe, parando de exigir d’Ele alguma contraprestação, e assim o que havia para Ele? Nada, não havia nada, não restava nada, pois Ele já não era mais nada, apenas uma sentinela esperando a ordem que nunca veio. O que aconteceu é que ele, finalmente, deixou de ser, assim mesmo com letra minúscula.


Daniel Gabriel Schincariol Cavalcante escreve ficção em tempo integral, é aluno da Faculdade de Direito da USP e se sustenta como funcionário do Estado, até então. Publica em https://medium.com/@gschincariol e foi premiado na Olimpíada de Língua Portuguesa em 2014.