quatro poemas de rita isadora pessoa

das ruínas preliminares [ou] dos papéis individuais no fim do mundo

aquela sou eu esperando a catástrofe
com as mãos seraficamente pousadas
                                     sobre o colo
a verdade é que só preciso
me agarrar violentamente
a um ponto fixo
na disco-voragem
        deste sonho

e permanecer submersa

acontece que eu engulo tua indiscrição gulosa
descendo pelas minhas pernas
e devolvo delicadas ossadas
sob o signo da carnificina moderada
(uma forma de canibalismo contemporâneo?)
expostas em seu tutano todas as comissuras dos ossinhos
equilibrados sobre a porcelana
frágil do meu prato, porque uma coisa que acontece é que
o meu corpo
ele não se quebra
não quebra como se quebra um prato
ou um fêmur
não como se quebra uma linha
no fim de uma frase longa e deselegante
alinhada à esquerda

o que tenho a ser feito
pode até ser chamado de ofício
de linha e agulha
mas eu contenho hemorragias
é o que eu faço
— deveria ter sido médica
mas me coube ser dique

: eu contenho hemorragias
com as mãos
todos os dias
— um ofício que empresto
da pedra
para subjugar o rio

 

devagar

com o pensamento em Ana C.

troco o hímen
por um homem
como quem troca
um fonema
          por outro

          a pele
          por outra

flor

escrita nas imediações
               das catástrofes naturais

 

diana, a caçadora II

[você],
que arrebata vertiginosa
morcegos do incêndio,
figura em espelhos baços,
com a mochila cheia de empáfia
e rimas brancas,
arruinou a minha vida
[por delicadeza].
ainda guardo no armário
seus estilhaços,
seu vestido de raposa,
a trança holandesa
na gaveta.
encaixotei por medo
a nossa criança estrelada
de mãos gretadas
sob a cama, mas eis que
um bater de asas, de repente
a reconstrói
inteira em fragmentos.
ouço o teu caráter difícil
de ciclone litorâneo
encrespando a superfície
dos cílios, a chuva de vento
a sacudir venezianas,

abafando
seus gritos
entre os travesseiros.

 

o ano da inundação

                    a coisa mais triste
que eu tentei realizar no amor
foi a tentativa de possuir um homem
  na superfície dolorosamente rugosa
                                    de um deserto

logo eu que atravessei a Grande Água
                           da China
eu         que guardo no armário
[ para fugas & eventualidades ]
as minhas botinas costuradas
com barbatanas legítimas

o fato é que na américa as notícias galopam:
duas novas zonas de radiação inexploradas
e a constatação de um excelente dia
para a formação de anticiclones
                                na atmosfera espatifada

[ um ano perfeito para desastres ]

mas é que o nosso romanceziño apocalíptico
deslocou para sempre
meu centro de gravidade
alguns graus para uma latitudelongitude
ligeiramente          acima
da elevação   do nível do mar

“um raro acidente”
eles disseram

causado por pequenos & minúsculos colapsos

“na américa” eles disseram
“você pode adquirir uma estrela
a preços módicos”

uma suave bagatela
por um lugar garantido
no cosmos

“você pode nomeá-la”
              eles disseram
como fazem algumas pessoas
                    que amam cavalos
ou      ainda         como    alguns humanos
nomeiam suas crianças

“pode-se mover uma cidade
mas não se pode mover um poço”
eles alertaram

— pode-se fingir um desmaio
porém não é possível forjar
uma queda livre:

ou você cai              ou você permanece

não é possível despencar

em                   slow                 motion

                                            pode-se amar um homem

                                                mas não um deserto


Rita Isadora Pessoa nasceu no Rio de Janeiro. É Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e doutora em Literatura Comparada (UFF). Publicou em 2016 seu primeiro livro de poemas, A vida nos vulcões. Foi vencedora do Prêmio Cepe Nacional de Literatura 2017, com o livro Mulher sob a influência de um Algoritmo. Seu terceiro livro, Madame Leviatã, foi lançado em agosto de 2020 pela Macondo Edições.